27 junho, 2006


Soturno

Amarelados
Aqueles dedos que seguravam
Ainda com alguma firmeza
O que existia da pena, a deslizar
Naquele papel já pardo.
Vejo que o tempo passou.
E eu, raspando a ponta da pena
No tinteiro, que mostrava
Nas rachaduras, a força de meus atos.
Em meu cinzeiro velho,
As piteiras,
Daqueles charutos que comi
Enquanto esperava as horas passarem.
Mas os ponteiros me mantinham
Perdidas, como fossem
Uma bússola quebrada.
Na estante, o cachimbo...
O fumo
Me aguardava,
Curtido na cachaça,
Que dividi,
Para mim, e para ele.
Minha poltrona singular,
Só dava espaço para o meu corpo,
Acomodado naqueles braços,
Que eram os únicos
Por horas a me abraçarem.
À luz dos faróis,
Eu conseguia enxergar
Os riscos e rabiscos que compunham
A obra de minha rotina tão irônica.
Embriagada com o que ainda
Restava na garrafa,
Esbarrando nos meus móveis,
Mofados,
Enfumaçados pelo que eu expirava
Incansavelmente!
E você,
A me olhar de uma forma terna,
Nos olhos,
A esperança que me roubou,
Nas mãos, as flores que lhe dei,
E acompanhada simplesmente,
Do meu cachimbo abandonado.

BM

Desejos Insanos

A boca que eu quero
Não é a minha, de lábios finos,
Quase intocáveis,
Nem tampouco aquela,
Que me morde os lábios
Em um sofrer desatinado,
Talvez a sua,
Que me instiga,
Desnuda,
Desorienta
A lucidez tão cordial.
As mãos que desejo
Não são as minhas, de unhas roídas
E pele manchada,
Nem aquelas que em um
Dos dedos carrega uma argola em prata.
Quem sabe umas
De finos dedos longos, e
Pálidos.
Na garganta, trago uma pedra,
A voz que oprimo,
As palavras que aprisiono, não são em vão.
E conquanto
Que tivesse
A minha boca
As minhas mãos
O que tão somente
Queria ter, não
Eram apenas os
Fios de cor branca.
BM

Clandestina

Sou sim,
Sou a clandestina de sua vida,
Que cheguei por estradas escusas
E sombrias.
Secreta,
Sou a veracidade da mentira,
O jubilo de tuas noites vazias,
E o malogro das manhãs enfadonhas,
Quando sozinha desperta
Ao som do pêndulo de teu relógio envelhecido.
Sou sim, a outra,
Aquela,
Que os outros difamam e condenam.
Dentro de sua cômoda
Sou a guardada na última gaveta,
Ainda sob roupas puídas.
Mas sou a que acompanha.
Quando a cidade adormece,
E você, insone,
Procura-me avidamente em suas memórias oníricas,
Sou o que te seda,
Sou a que acalma
Os pesadelos infantis e perenes.
Sou o que te embriaga,
Sou a tua cabeça,
Teu tronco e membros,
...
...
Que sequer respondo mais por mim!
BM


Condenadas

Minhas mãos,
Aquelas que afastavam
Delicadamente os finos fios
Das melenas, dispersos,
Assim como meus olhos
Naquela tez.
As unhas pontiagudas,
Um pouco longas,
Contornavam os traços,
Marcantes, impressionantes,
Daquele que não era um rosto
Comum, não, nunca fora.
Delineava com avidez os lábios,
Disfarçando quem sabe
O desejo incontido de uni-los aos meus.
Os óculos, retirados,
Poderias arranhá-los,
E não necessitavas de visão,
Fomos os quatro sentidos
Sintetizados na quimera
Mais sublime de nossas vidas,
Vazias até então.
Meus cabelos,
À luz das frestas de uma cabana
Abandonada, avermelhavam-se.
E espalhados por entre as sardas
De um colo para mim
Ainda imaculado.
A leveza de meus lábios
Roçando o contorno de cada seio,
Trazia a expressão mais plena de êxtase,
Estávamos felizes!
Fomos amantes, amadas, marcadas
Pelas garras que deslizavam ardorosamente,
Em nossas costas molhadas.
E a dor que não era sentida,
Ao acordar me pungia como um aço estacado
Que condenava ao devaneio,
Apenas.
BM

A Bent

Para que te ressonas
Nos travesseiros de um enxoval
Mascarado?
Para que ainda cerra as pálpebras
Se me terás sonhando consciente,
Por três noites a fio,
Perturbando tua quietude matinal?
Por que deixastes a garganta petrificar,
Tal como edema de glote,
Se ninguém nos espiava, não tínhamos testemunhas,
Para um beijo roubado, que sugaria a saliva,
Agora seca.
Por que ainda me ouves
Se nada mais digo,
Se são insonoros os meus berros?
Se sou criatura muda, calada,
Dona de um eu-lírico demente.
Por que carregas em tua mão esquerda
Uma argola que afirma um matrimônio?
Uma conveniência?
Por que te martirizas nos almoços de
Domingo à espera de outro alguém à mesa,
Se sabes bem,
Que teu homem não irá,
Nem tampouco tua mucama?
Por que alugastes filhos,
Se ainda sangravas teu ventre?
Por que ainda me olhas,
Sentada num banco de praça,
Se temes os nazistas já inexistentes?
Para que te afogas nos papéis
Espalhados das poltronas tão sedentas
De calor humano, quando só ofertas
Teus livros empoeirados?
Para que me versifica o que te oprime,
Te engasga, te sufoca,
Se sou o que tu escondes?
Por que me quisera tão somente em um passado
Remoto.
Nalgum pretérito imperfeito,
Quando não desejo que te mumifiques,
Mas que deveras deixe
Que te embranqueçam os cabelos
Enruguem pele e mãos,
Salpiquem as sardas em teu colo,
Um dia límpido.
E que recebas a velhice
De portas e braços abertos
Tal como uma anfitriã perfeita,
Sem lastimar jamais a falta
De uns braços hoje renegados.
Para que abraçar o peso de meu corpo
Já sem estímulo, depois de a vida,
Não mais pulsar nas veias...
E dizeres tão somente o quanto me quisera
Se não respondo mais, por quê?
BM

Ave Noturna
Venha, me assalte,
Quando distraída penso em ti.
Assim, sorrateiramente,
Invadindo a calmaria de meu quarto,
Deitando nos meus lençóis brancos,
Deixando seus cabelos repousarem
Nas almofadas, e a face, em meu seio
Que disparado reage quando meus olhos
Fitam o teu sorriso iluminado.
Mantenho meu disfarce,
Não estás ao meu lado,
Devaneio,
Quimera,
Ilusão...
Olho-te novamente de soslaio,
A vontade de aproximar-me
É contida pelo pouco de juízo
Que ainda nutre a minha lucidez.
Vejo ao longe, aquela dama que dança
Por entre os corredores de um ambiente
Indefinido.
Seus passos são determinados,
O ritmo que embala seu corpo é mavioso,
E não a conduz até minha realidade...
Esta que me faz inerte diante
Dos olhos daquela que é a donzela
De minhas noites intermináveis...
Quando reprimida me faço
Diante das horas mortais ao lado teu.
Tão mortais...
Quisera eu, a extensão desses instantes
Tão ínfimos.
Mas eu ainda te olhava,
E sem que notasses
Contemplava a suavidade das sardas
Naquele colo...
Exposto,
Desejado...
A maciez de um rosto
Sem as marcas da idade,
Rosadas as maças,
Os olhos cintilantes, perdidos?
Maravilhosamente bela...
É uma ave noturna...

BM



Interrompida


E lá estava ela,
Fria feito uma pedra
Gélida, que sequer suava
Ao calor invadindo as paredes
De um quarto mofado.
Interrompida,
Cruelmente tolhida
Quando ao nascer
Dava o seu grito pioneiro de vida,
Suspiro negado,
Respiração abafada
Pelo parto tardio.
Mãos aniquiladas,
Perfeitamente decepadas
Quando o braço raquítico
Estendia-se para alcançar o copo.
Negada,
Tolhida,
Descorçoada.
E mesmo assim,
Existia a avidez
Que mantinha ainda com vida.
Mas que vida?
Maravilhosamente amaldiçoada.
Seu corpo prematuro
Desejava o calor de sua juventude,
Perdida...
Os bonecos na estante,
Empoeirados,
Ainda esperando pelo afago
Caloroso dela,
Que nunca fora uma criança.
Prostrada,
Abatida,
Anulada...
Ela ainda adormecia
E tal como um anjo de asa quebrada
Sonhava com o não acontecido.
BM

Confissão


Meus temores, aqueles,
São somente meus,
E com ninguém os divido,
Jamais os confesso.
Extirpando,
Abstendo,
Anulando
Está personagem enérgica
Que encenou minha vida
Desde o nascimento.
E hoje, evadida, será que ainda vive??
Maculada n’algum espaço do passado,
Num canto do guarda-roupa mofado,
Unida, agarrada às traças
Que lêem meus livros.
Sobrevivendo às mazelas,
Se nutrindo dos meus vestidos.
Eles ainda estão aqui,
Me acompanham,
Andam ao lado meu,
E ao lado teu, emudeço.
Tua coragem ofusca minha tirania,
Atirando-a tal como criança
Assustada, para baixo da mesa.
Eu chamo por ti,
Mas não são minhas as respostas que me dás.
Assim como não são meus os olhos teus, deficientes.
A alguém pertence?
Questiono meus temores,
Dialogo como eles.
E calada subestimo
A percepção que espero assaltar-te.
Atirando-te nos braços meus,
E sentada em meu sofá,
Confessaria....
BM

22 junho, 2006


Casamata


A sala um pouco escura
Mas ainda não era noite,
O sol é que nunca viera,
Assim como tu...
E eu estava parada
Inerte,
Em cólera.
Olhando os copos,
Brilhantes, organizados delicadamente
Naquela cristaleira fechada,
Assim como meu corpo.
O licor ocupando
A altura de dois dedos na garrafa
E o ponto máximo em minha embriaguez.
As piteiras de sete dias já expulsavam
As cinzas de meu velho
Amigo e companheiro: o cinzeiro!
Que na minha mesa de centro,
Era único.
Os arabescos do tapete se confundiam
Com as cinzas.
Eu as soprava
E o vento, meu cabelos,
Já grisalhos.
Na mesa, as seis cadeiras
Tão vazias,
Esperavam os filhos
Que não nasceram.
No aparador,
Uma foto sua para ajudar
A memória que já não tenho.
Mas a porta,
Está aberta,
Assim como meus braços....
BM


Meu nu vestido

Estava vestida com o nu
Mais opulento que já existira.
Os cristais a enfeitar
Aquela gargantilha
Que usara em noites plácidas
De um inverno distante.
Atiradas no criado-mudo,
As minhas jóias raras,
Os meus amores secretos.
Trancados naquele baú escarlate
Como o fogo que arde
Nas laudas impressas
De nossas vidas absurdas.
Os cachos das madeixas
A esconderem os seios pequenos
Daquela donzela pintada
Pela promiscuidade dos dias.
A face despida de toda
A maquiagem que a vida
Trazia nos finais de semana.
E ao final de cada
Domingo, estava apenas o nu
Fantástico de um corpo
Ressequido pelo prazer da morte.
Mas eu era fêmea,
E minha voz abafada
Dava som ao silêncio funesto
Daquela madrugada.
E, mais uma vez,
Eu respirava o ópio
Dos meus desejos tiranos.
BM

Negação

Não, não sou sua,
Se foi, assim como o crepúsculo,
Toda a vontade de sofrer.
Sou rosa murcha,
Pranto exíguo.
Fechei minha porta,
Afoguei-me em verdades incômodas,
Para não te ver mais,
Magoada,
Abandonada,
Forçada ao amor,
Destinada à dor.
Não, não ouço mais teu coração
Cada vez que tenho a face
Recostada àqueles seios que ainda
Sinto nas mãos,
É vago,
O silêncio funesto.
Fiquei perdida na vida que era tua,
Sem o espaço meu.
Somente na cama,
Ainda existiam dois travesseiros,
Que nos esperavam apenas para sonhar,
Secretas quimeras!
Mas as alegrias fingidas,
Sustentavam a nossa história não vivida.
Não, não acordei ainda,
Somente sua,
Doente,
Quero padecer sem ar
Quando as lágrimas lastimam
Uma única ausência,
A de minha vida roubada.
BM


Crônica


Este sentimento agudo
Que me vem assim,
Sorrateiramente,
Sem aviso prévio,
Sem pedir licença...
Levanta o pó opaco
E seco daquela mesa
De vidro estilhaçado.
Varre encontros tortos
Das paredes já infiltradas - os cantos.
Onde espremia meu corpo,
Para sentir a umidade nos braços,
Pálidos.
Pareciam alguém,
Sentia-me prisioneira,
E isto, era crônico.
Sentimento febril,
Delirante como os suspiros
Que murmurávamos aos
Ouvidos distantes
Em meio às madrugadas insones.
À luz eclipsada de uma noite
Prematura,
Declamei secretamente
As batidas descompassadas
De um músculo já adoecido,
Insistentemente pulsante...
Àquela que seria a personagem
Tardia em meus atos...falhos,
Sempre tão inválidos.
Abstraio-me, retraída
Na epiderme sanguinolenta,
Oculta pelos trapos
Que vestiam uma covardia,
Perene,
Visceral,
Mas a possuíamos.


BM

Escravo

Ah, esses olhos marejados,
Refletida nas pupilas
Aquela face serena, terna.
Diante de um porta-retratos
Estava letárgico
Inerte
Envolvido.
Minha riqueza,
Tesouro roubado.
Desejos luxuriosos
Saudade de um beijo marcado
Que minha boca sedenta
Implorava
Suplicava
Pedia em desatino.
Lembranças de minhas mãos trêmulas
Quando passeavam
Entre caminhos jamais percorridos
Por qualquer servo.
Curvas tortuosas
Daquele corpo,
Ah, minha perdição.
Sou seu escravo
Quando banido de seus dias
Abstenho-me no negrume
Desta tarde nebulosa.
Os últimos raios escarlates
São lançados, abandonados!
Por um sol que bronzeara
Sua pele durante toda manhã.
E que agora,
Não mais que agora,
O dia era findo,
Estrelas compunham
O cenário de uma noite fulgaz,
E a dama de pedra,
Aparecia-me como em um sonho,
Seus passos em minha direção
Eram danças.
Sua voz,
Melodia,
Música,
Murmurando nomes
Que eram meus naquele instante,
Conceituava-me à sua moda,
Homem.
Animal,
Ladino.
E ela, agredia-me em total opulência.
Era minha,
Dama,
Amada,
Amante!
Ao amanhecer, meu corpo lanhado,
Agonizava de saudade,
Aguçado,
Atirado,
Atiçado,
Mas naquela manhã,
Acanhado em uma realidade humilhante,
Recolho-me no abismo da solidão,
Fugindo mais uma vez
De uma alma
Que era de aço.

BM

19 junho, 2006



... criatura do ermo noturno
figura plácida nas noites sem luar,
boneca de porcelana,
enquanto eu,
cera barata,
que qualquer pavio consome.
Súplice,
Pedinte,
Atirada
Aos pés que são teus.
E as mãos que são minhas?
Em um ato desatinado
Embaraçam os cabelos,
Quando imagino o que poderia ser...
E adormeço nos braços de uma paixão...
Bandida.E você, acordada, imagina o porquê?


BM

Mascarada


Enquanto espero que venha,
De pé, espio refletida no espelho, a minha face,
Abatida,
Olheiras que saltam,
Como fossem a maquiagem
Que ainda faria.
O risco nas pálpebras me sai um pouco
Em desalinho,
As mãos trêmulas, esbarram
No pó que esconderia as marcas
De minha idade.
Quebrado,
Eu cato ainda, no chão,
O que posso usar para restituir um rosto.
A boca, não pinto, aguardo que venha,
E na esperança de que tenha
Os lábios seus tocando
Avidamente a secura dos meus, mantenho a boca virgem...
A ti deixo, que a torne rosada,
De um tom bem suave, que o beijo roubaria.
Ali, tão maravilhosamente entristecida,
Acompanha-me o copo,
De bordas finas, e rachadas.
No seu fundo, as marcas feitas pelas
Piteiras das cigarrilhas baratas,
Apagadas no seu interior.
Mascarada,
Oculta,
Omissa ainda
Estou!
Mas não por muito tempo,
Apenas, até a hora de sua chegada.




BM

Somente

Sem cobranças,
Sem anseios,
Sem o amanhã.
Me tenha,
Me cative,
Me aprisione
Em teus braços,
Uma noite dessas,
Esbarre nesta carcaça que tanto te instiga,
Mas não peça perdão...
Apenas me hipnotize
Com a chama a reluzir
Nesses olhos que são só teus...
Luz que te batizou!
Cale o que te sobe a garganta,
E não me ofenda,
Beba os desacatos
Aos goles, junto dos beijos meus,
Quando freneticamente a língua
Percorreria sua nuca,
Desbravando o que por horas
Apreciei sob a opulência de suas vestes,
A alvura de sua pele,
Reagindo ao toque suave de minhas mãos,
Que te apertariam numa busca alucinada
De te consumir a carne.
Minta para mim,
Me chame tua.
Me ponha nua,
Na escuridão de um canto qualquer
À luz fosca de uma lamparina,
Onde luzirá...
Apenas a maciez de suas madeixas negras,
Que eu tocaria com ternura,
E no seu colo adormeceria...
Mas, não me diga nada,
Me ame apenas,
E tão somente, desnorteada,
Até diria: unicamente!
BM

Rainha de Copas


Não é um conto de fadas.
Acorda Alice,
Desperte deste ressonar poético
E sublime,
Tão providencial.
Levante, Alice,
O corpo que estirado nas tábuas corridas
Era de uma exaustão
Exacerbadamente celestial.
Mas, Alice, necessito-te agora,
Minha ânsia em tirar-te a vida
Fora tão somente para não
Contemplar o lindo sorriso de dor
Irradiado nesta fenda que tens à face,
Pálida,
De um alvo mais que a neve.
Abra lentamente as pálpebras cerradas,
E olhe para mim,
Estes olhos infantis, deficientes, são
A expressão mais singela que
Os dias me ofertam cada manhã
Saltada da cama ao som do galo maldito.
Preciso-te acordada,
Levante, Alice,
Estou aqui, do lado oposto ao espelho,
E não a vejo,
Sim, apenas a Rainha de Copas
É refletida naquela placa imensa
De moldura em ouro e marfim.
Alice,
Não sou fada,
Nem tampouco cruel,
Quero há muito deslizar as garras vermelhas
Nas maças, aquelas,
De teu rosto
Róseo tão prematuro.
E de leve, cautelosamente
Percorrer
O decote que se regala
Num vicioso regaço
Fazendo-me a alma adormecer
Serena e descansar ao som de
Uma canção de ninar.
Retorno ao colo, é de tamanha beleza,
Que fico horas a fio, hipnotizada,
Estática, olhando-te
Não me penalizes por este feito,
Doce Alice...
Os dias já me têm ofertado fortuitas penalidades.
Sou peçonhenta apenas ao que te é aflitivo
Alice, não fique às avessas,
Ponhas-te de frente,
A esta soberana
Que uiva,
Clama,
Roga por teu exílio
Nestes braços meus.
Alice, venha apenas,
Mas venha assim,
Largada,
Abandonada,
Adoecida,
Cuido-te os ferimentos,
Cicatrizo-te a derme,
E a língua, toco a córnea,
Deslizando úmida e em brasa
Sugando as lágrimas que correm
Pelas maças suculentas.
Prometo, Alice,
Beber teu sofrimento aos goles.

BM








Delirium tremens


No início, apenas um bloco,
Parafina.
Dias depois, o som ensurdecedor,
Das letras grafadas naquele envelope
Ainda lacrado, levava-me ao mais sublime pânico.
Era somente um resultado - final, atestado, óbito?
Corroendo a mucosa adoecida,
Córion hemorrágico,
Atrofia dos tecidos, por tempos saudáveis.
Positividade na busca do prazer,
De encontro aos estímulos que traziam a satisfação.
Ao negativo, exponho a dor do
Desvario alcançado por não tê-la.
Demente,
Alucinada,
Encantadoramente delirante.
Naquela mesa de bar,
Sofá de sala,
Ou até mesmo, sentada
Numa encruzilhada qualquer
Consumindo, consumida
O consumado!
Doses maiores mantém
A embriaguez perpetuada,
E eu, perfeitamente tolerante.
Minha dependência é simultânea
Ao grau de resistência.
Até quando olharei sem tocar,
Como suportar a falta do que nunca possui?
Sentir a ausência do que nunca sorvi?
Por que as reações em um corpo,
Por ti nunca tocado.
Eriçar os pêlos quando imagino
A insônia ao lado teu.
Como recuar à abstinência tua?
Se já cheguei à metade do caminho.
E agora, é sombrio e assustador o regresso...

BM




Fédon


Começo pelo fim,
No fechar das cortinas,
Sem aplausos,
Vaias,
Nem rosas.
Sem gritos,
Afagos,
Nem suplícios.
Não pediram,
Nem rogaram
Pelo regresso
Daquela que não
Foi artista de palco.
Ao final estou,
Ainda tentando...
Com cicuta fora de validade,
Expirou,
Meu suspiro, e era único...
Mas não desisto,
Nunca,
Preciso um pouco,
Só um pouco da falta de vida.
De sentir a ausência do ar,
Os pulmões vazios,
Ou ainda, apenas
Enfumaçados...
Esbranquiçado
O músculo vital,
Murcho...
De um caixão marfim,
Com pequenas placas em ouro adornando as laterais,
Rubis ao centro destas,
E apenas uma inicial na parte que ao se fechar
A vida estaria me levando.
Ou tão somente de ripas finas
Que os pregos uniriam
E meu cadáver seria velado,
Pele fina e sem rugas
Pois o formol ajudaria a esticá-la...
Quero uma camada fina de pó,
E nos olhos, o kajal pode ser
Do camelô da esquina.
As flores,
Estas podes buscar no
Quintal do vizinho,
Ou naquela floricultura que
Entregava sempre a cada último
Dia do ano, os carmins em minha porta,
Mas, só até abaixo do seio,
Não quero sufocar,
Não quero sucumbir.
Quero tão somente
Em minha lápide
Uma citação enfática:
Se foi,
Por conta própria.

BM

Juras

Em três noites escuras busquei por ti,
Clamei seu santo nome sussurrando
Envolta às almofadas puídas de minha
Cama pueril.
Roguei súplice, pedinte, a presença
Tão cobiçada de tua alma, ainda que sonolenta.
Prometeria acalantos, cantaria para ti adormeceres,
Meus afagos seriam serenos,
E não necessitarias de diazepínicos
Para insônia
Que cessaria no afago de teus cabelos.
Dócil, quase oculta,
Deslizaria eu os dedos em tuas melenas escuras
E não procuraria os vestígios dos fantasmas
Em teu travesseiro, que custara alguns gansos sem vida,
Nem tampouco o traço inegável e bárbaro dos calendários trocados
Que traziam vagarosamente ao castanho de teus fios um tom alvo.
Pois incomodavam deveras a vaidade tão perene.
Jamais tocaria neles novamente,
Ou se quisesses, extirparia o que aflige,
E seríamos duas crianças de inocência pagã.
Não teríamos despertadores,
Nem sequer criado-mudo para sustentar objetos
Dos quais não necessitaríamos.
Não ouviria tão distante
A voz que é tua, por um fio seco ao ouvido,
Recitarias para mim, o mais belo de tuas liras
Rabiscado em papiros com penas de pavão.
Juraria a ti, tão somente minha vida,
Secreta e de pouca valia.
Nada mais tenho a ofertar
Do que um corpo unido ao teu
No mais onírico de minha realidade.
Nas mais gélidas noites soturnas,
Quando ainda não batessem à porta,
Eu juraria estar teu repouso junto ao seio meu!
BM

07 junho, 2006


Manhã de Mágoa

No cerrar das pálpebras
Olhar ao lado,
Somente um travesseiro. Apenas
A baderna de roupas espalhadas,
Atiradas ao chão,
Mas de uma só pessoa,
Eu
Desisto de amar,
Jogo o lenço,
Chuto o balde,
Deixo de sofrer.
Entrego-me à redenção,
Fazendo-me alheia aos olhos
Ferinos da fera ladina.
Que só espanca,
Escorraça,
Extirpa
Os sonhos tão infantis
De minhas íris há muito
Não luzentes.
Por que a dama não vem?
Se é gélida esta floresta
A qual me atiro,
E desbravo loucamente
Os desejos insensatos,
Insanos,
Castigados.
Se me entreguei,
Por que não se apoderaram
De minhas mãos,
Que de tão frias,
Hoje já não movem mais os dedos?
Por que a mágoa,
Se a hora, ainda era tão matinal?

BM

Oculta
Respiro a ausência tua
Em meus dias soturnos,
Quando imbuída em um desejo ferino
Me dou
Me entrego
Me oferto...
A ti, recostada nos travesseiros,
Como fossem tu.
Amparadas nos braços do sofá,
Toca a boca,
Umedeço com o que ainda me resta da saliva,
Sorvida na noite anterior.
Mas eu te amo,
Amo-te pelas tuas faltas,
Pela espera eterna
De enfim adormecer nos braços
Que são teus ao fim de cada dia.
Amo o que tu não me dizes,
Mas que ouço no silêncio funesto
Dos dias de inverno...
Amo as suas mãos,
Até quando não tem as marcas
Das minhas...
Amo o cheiro que exala
Quando o cio tardio te assalta
Em uma daquelas manhãs sonolentas,
Sacio os teus desejos mais insensatos.
E depois, deitada,
Sozinha, busco o teu corpo...
Ouço ainda os ecos de minha voz
Gritando teu nome...
Amo cada lembrança, como se estivesses agora
O teu corpo pesando sobre o meu.
Amo o sorriso que irradias,
Mesmo quando sinto os dentes
Cravarem-me as costas,
Amo tua vida,
Ainda que me mantenha oculta.
BM


Mulher de Pedra


Mulher a que todos desejavam,
Austera,
Elegante,
Porém ressequida.
Daquelas que nem os goles
Da água mais ardente
Eram capazes de derrocar.
Aquela beleza tênue
Que lhe varava a face
No momento de cada sorriso,
Não a tornava mais terna,
Nem assim a fragilidade a possuía.
Mulher de personalidade,
Será que apenas uma?
Mulher de Pedra,
Verdadeira rocha esculpida
Na forma mais charmosa de vida,
Ainda era mulher.
Por mais que tentasse, era dotada
Do carisma feminino,
Escondido,
Malogrado em suas manhas e entranhas.
Entranhas das quais o azedume
De uma amargura escorriam-lhe.
Daquela mulher,
Ela,
Somente aquele,
Esplêndido ser foi capaz de amar,
Engolfada em seus desejos mais secretos,
Lascivos, era sedutora,
Nem os arrulhos das rolas
Eram melodias,
Comparados aos acentos maviosos
Emitidos pelo som
Mais sutil daquela voz.
Todo aquele esplendor
Um dia em minha cama
Possuiu-me a alma
Arrancou-me gemidos
Sussurros,
Para tão de repente,
Abandonar-me.
E quando as pálpebras entorpecidas
Cerraram lentamente,
O último olhar tão vil
Que reina na pupila adormecida,
Imerso nas horas funestas da noite,
Avistou aquela imagem,
Nem um som ao meu grito,
Sequer um aceno ou um gesto,
Nada emitia,
Apenas o sangue que varava de meu corpo
Manchava os lençóis.
Aquela dama parecia apreciar o espetáculo
Como alguém que contempla
O pôr do sol,
Sabendo que perderia a luz do dia
Mas o negrume noturno acalmaria
Sua dor mais atroz.


BM
Plágio de uma Memória

Ando, sigo em busca
Olho, me interesso,
Tentativas,
Minha maquiagem é bem feita
Produção atraente.
Mulher bela,
Carta difícil,
Busco amor, tão simples.
Sozinha na vida, será?
Afasto de mim as lembranças.
Minhas companheiras.
Atiro-me nos braços do mais sensato.
Fecho meus olhos,
Anulo-me às vontades,
Podem ser mudadas,
Preciso de novos horizontes.
Necessito me socorrer,
Libertar-me.
E amanhã?
Valerá à pena ter amanhecido?
Minhas revelações,
Recordações de quando fui capaz
De quando virei a mesa,
Me conheci!
Não estou feliz!
Viver se tornou uma arte
Ilusória e teatral.
Como toda farsa é prematura
A minha não se faria verdade.
Pois faltou um toque,
Um desejo
A vontade.
Me restou saudade
Do tempo em que minha face
Revelava quem realmente sou.
Eis o retorno, só deste me faço,
Volto ao meu terreno,
Entro na minha vida,
E lá que encontro no quarto
Aquela mulher, a mesma
Que nasceu em mim
E dela não me desfaço.
Mais uma vez me faltou
A vontade.
Esbarro-me naquelas tais “Memórias”
De um defunto hilário.
Folheio as laudas,
Eis que em uma página
Ele me diz: “leitora,
Estão lá os meus cinqüenta anos,
Aqueles teimosos, não tolhidos de frio
Nem reumáticos,
Mas adormecidos em sua fadiga,
Um pouco ávidos de cama e repouso.”
BM