27 junho, 2006


Soturno

Amarelados
Aqueles dedos que seguravam
Ainda com alguma firmeza
O que existia da pena, a deslizar
Naquele papel já pardo.
Vejo que o tempo passou.
E eu, raspando a ponta da pena
No tinteiro, que mostrava
Nas rachaduras, a força de meus atos.
Em meu cinzeiro velho,
As piteiras,
Daqueles charutos que comi
Enquanto esperava as horas passarem.
Mas os ponteiros me mantinham
Perdidas, como fossem
Uma bússola quebrada.
Na estante, o cachimbo...
O fumo
Me aguardava,
Curtido na cachaça,
Que dividi,
Para mim, e para ele.
Minha poltrona singular,
Só dava espaço para o meu corpo,
Acomodado naqueles braços,
Que eram os únicos
Por horas a me abraçarem.
À luz dos faróis,
Eu conseguia enxergar
Os riscos e rabiscos que compunham
A obra de minha rotina tão irônica.
Embriagada com o que ainda
Restava na garrafa,
Esbarrando nos meus móveis,
Mofados,
Enfumaçados pelo que eu expirava
Incansavelmente!
E você,
A me olhar de uma forma terna,
Nos olhos,
A esperança que me roubou,
Nas mãos, as flores que lhe dei,
E acompanhada simplesmente,
Do meu cachimbo abandonado.

BM

Desejos Insanos

A boca que eu quero
Não é a minha, de lábios finos,
Quase intocáveis,
Nem tampouco aquela,
Que me morde os lábios
Em um sofrer desatinado,
Talvez a sua,
Que me instiga,
Desnuda,
Desorienta
A lucidez tão cordial.
As mãos que desejo
Não são as minhas, de unhas roídas
E pele manchada,
Nem aquelas que em um
Dos dedos carrega uma argola em prata.
Quem sabe umas
De finos dedos longos, e
Pálidos.
Na garganta, trago uma pedra,
A voz que oprimo,
As palavras que aprisiono, não são em vão.
E conquanto
Que tivesse
A minha boca
As minhas mãos
O que tão somente
Queria ter, não
Eram apenas os
Fios de cor branca.
BM

Clandestina

Sou sim,
Sou a clandestina de sua vida,
Que cheguei por estradas escusas
E sombrias.
Secreta,
Sou a veracidade da mentira,
O jubilo de tuas noites vazias,
E o malogro das manhãs enfadonhas,
Quando sozinha desperta
Ao som do pêndulo de teu relógio envelhecido.
Sou sim, a outra,
Aquela,
Que os outros difamam e condenam.
Dentro de sua cômoda
Sou a guardada na última gaveta,
Ainda sob roupas puídas.
Mas sou a que acompanha.
Quando a cidade adormece,
E você, insone,
Procura-me avidamente em suas memórias oníricas,
Sou o que te seda,
Sou a que acalma
Os pesadelos infantis e perenes.
Sou o que te embriaga,
Sou a tua cabeça,
Teu tronco e membros,
...
...
Que sequer respondo mais por mim!
BM


Condenadas

Minhas mãos,
Aquelas que afastavam
Delicadamente os finos fios
Das melenas, dispersos,
Assim como meus olhos
Naquela tez.
As unhas pontiagudas,
Um pouco longas,
Contornavam os traços,
Marcantes, impressionantes,
Daquele que não era um rosto
Comum, não, nunca fora.
Delineava com avidez os lábios,
Disfarçando quem sabe
O desejo incontido de uni-los aos meus.
Os óculos, retirados,
Poderias arranhá-los,
E não necessitavas de visão,
Fomos os quatro sentidos
Sintetizados na quimera
Mais sublime de nossas vidas,
Vazias até então.
Meus cabelos,
À luz das frestas de uma cabana
Abandonada, avermelhavam-se.
E espalhados por entre as sardas
De um colo para mim
Ainda imaculado.
A leveza de meus lábios
Roçando o contorno de cada seio,
Trazia a expressão mais plena de êxtase,
Estávamos felizes!
Fomos amantes, amadas, marcadas
Pelas garras que deslizavam ardorosamente,
Em nossas costas molhadas.
E a dor que não era sentida,
Ao acordar me pungia como um aço estacado
Que condenava ao devaneio,
Apenas.
BM

A Bent

Para que te ressonas
Nos travesseiros de um enxoval
Mascarado?
Para que ainda cerra as pálpebras
Se me terás sonhando consciente,
Por três noites a fio,
Perturbando tua quietude matinal?
Por que deixastes a garganta petrificar,
Tal como edema de glote,
Se ninguém nos espiava, não tínhamos testemunhas,
Para um beijo roubado, que sugaria a saliva,
Agora seca.
Por que ainda me ouves
Se nada mais digo,
Se são insonoros os meus berros?
Se sou criatura muda, calada,
Dona de um eu-lírico demente.
Por que carregas em tua mão esquerda
Uma argola que afirma um matrimônio?
Uma conveniência?
Por que te martirizas nos almoços de
Domingo à espera de outro alguém à mesa,
Se sabes bem,
Que teu homem não irá,
Nem tampouco tua mucama?
Por que alugastes filhos,
Se ainda sangravas teu ventre?
Por que ainda me olhas,
Sentada num banco de praça,
Se temes os nazistas já inexistentes?
Para que te afogas nos papéis
Espalhados das poltronas tão sedentas
De calor humano, quando só ofertas
Teus livros empoeirados?
Para que me versifica o que te oprime,
Te engasga, te sufoca,
Se sou o que tu escondes?
Por que me quisera tão somente em um passado
Remoto.
Nalgum pretérito imperfeito,
Quando não desejo que te mumifiques,
Mas que deveras deixe
Que te embranqueçam os cabelos
Enruguem pele e mãos,
Salpiquem as sardas em teu colo,
Um dia límpido.
E que recebas a velhice
De portas e braços abertos
Tal como uma anfitriã perfeita,
Sem lastimar jamais a falta
De uns braços hoje renegados.
Para que abraçar o peso de meu corpo
Já sem estímulo, depois de a vida,
Não mais pulsar nas veias...
E dizeres tão somente o quanto me quisera
Se não respondo mais, por quê?
BM

Ave Noturna
Venha, me assalte,
Quando distraída penso em ti.
Assim, sorrateiramente,
Invadindo a calmaria de meu quarto,
Deitando nos meus lençóis brancos,
Deixando seus cabelos repousarem
Nas almofadas, e a face, em meu seio
Que disparado reage quando meus olhos
Fitam o teu sorriso iluminado.
Mantenho meu disfarce,
Não estás ao meu lado,
Devaneio,
Quimera,
Ilusão...
Olho-te novamente de soslaio,
A vontade de aproximar-me
É contida pelo pouco de juízo
Que ainda nutre a minha lucidez.
Vejo ao longe, aquela dama que dança
Por entre os corredores de um ambiente
Indefinido.
Seus passos são determinados,
O ritmo que embala seu corpo é mavioso,
E não a conduz até minha realidade...
Esta que me faz inerte diante
Dos olhos daquela que é a donzela
De minhas noites intermináveis...
Quando reprimida me faço
Diante das horas mortais ao lado teu.
Tão mortais...
Quisera eu, a extensão desses instantes
Tão ínfimos.
Mas eu ainda te olhava,
E sem que notasses
Contemplava a suavidade das sardas
Naquele colo...
Exposto,
Desejado...
A maciez de um rosto
Sem as marcas da idade,
Rosadas as maças,
Os olhos cintilantes, perdidos?
Maravilhosamente bela...
É uma ave noturna...

BM



Interrompida


E lá estava ela,
Fria feito uma pedra
Gélida, que sequer suava
Ao calor invadindo as paredes
De um quarto mofado.
Interrompida,
Cruelmente tolhida
Quando ao nascer
Dava o seu grito pioneiro de vida,
Suspiro negado,
Respiração abafada
Pelo parto tardio.
Mãos aniquiladas,
Perfeitamente decepadas
Quando o braço raquítico
Estendia-se para alcançar o copo.
Negada,
Tolhida,
Descorçoada.
E mesmo assim,
Existia a avidez
Que mantinha ainda com vida.
Mas que vida?
Maravilhosamente amaldiçoada.
Seu corpo prematuro
Desejava o calor de sua juventude,
Perdida...
Os bonecos na estante,
Empoeirados,
Ainda esperando pelo afago
Caloroso dela,
Que nunca fora uma criança.
Prostrada,
Abatida,
Anulada...
Ela ainda adormecia
E tal como um anjo de asa quebrada
Sonhava com o não acontecido.
BM

Confissão


Meus temores, aqueles,
São somente meus,
E com ninguém os divido,
Jamais os confesso.
Extirpando,
Abstendo,
Anulando
Está personagem enérgica
Que encenou minha vida
Desde o nascimento.
E hoje, evadida, será que ainda vive??
Maculada n’algum espaço do passado,
Num canto do guarda-roupa mofado,
Unida, agarrada às traças
Que lêem meus livros.
Sobrevivendo às mazelas,
Se nutrindo dos meus vestidos.
Eles ainda estão aqui,
Me acompanham,
Andam ao lado meu,
E ao lado teu, emudeço.
Tua coragem ofusca minha tirania,
Atirando-a tal como criança
Assustada, para baixo da mesa.
Eu chamo por ti,
Mas não são minhas as respostas que me dás.
Assim como não são meus os olhos teus, deficientes.
A alguém pertence?
Questiono meus temores,
Dialogo como eles.
E calada subestimo
A percepção que espero assaltar-te.
Atirando-te nos braços meus,
E sentada em meu sofá,
Confessaria....
BM