14 janeiro, 2007


Memórias


Naquele tempo,
Eu, menina peralta,
Saltava por entre pedras,
Tão miúdas,
Ideal à altura de minhas pernas,
E ínfimas diante do mar
Que se avistava.
Os calendários sendo trocados
A cada dia primeiro,
Traziam-me as marcas da idade,
Mostrando cruelmente
Que meu cobertor,
Já não mais me cobria os pés.
E naquele mar de sempre,
Apenas o tempo, atual,
A mulher senta,
Espia as ondas,
Atira uma rosa
Em saudação.
E não mais dança a sua meninice
No meio daquelas pedras escorregadias,
Se foi o encanto angelical,
A esperança infantil,
Ou a mazela da idade a limita?
Completamente impedida
De atos tão naturais...
Risco um fósforo...
Entre os dedos,
Hoje, de unhas longas,
Apenas uma cigarrilha,
Na areia o papel,
Nos cabelos a caneta,
E tudo aquilo,
Simplesmente meu cenário.

BM


Anseios Temporais


Mas eu ainda estava viva
E meu clamor ardente
Lavando de lágrimas
Um rosto que há pouco
Sorria em uma expressão tão
Singela de felicidade.
Vejo minhas alegrias abortadas
Antes de o poeta declamar
A última estrofe de minha vida.
Fazendo do final um mistério tenebroso.
Fico a esmo vagando nesta cidade
Que velozmente me afasta
Arrasta-me
Atira-me nos braços da solidão.
Agora nada me resta
Além da claridade
Reluzindo ao final
De uma porta que ainda
Vejo entreaberta.
Mas meus olhos já cerrados
Lágrimas nas pálpebras
Mantém meu corpo inato,
Fico sentada na curva da vida.
Vivo os dias rogando
Pelas noites,
E quando as vejo, me afugento
No canto escuro daquela sala de estar.
A dor me é pungente,
Companheira noturna,
Chega ao cair da tarde
E com ela divido meu travesseiro.
Lamento pelo fim que antecedeu
A chegada da felicidade
Olho aquele porta-retratos,
Que beleza singular,
Beijo-te os olhos,
A boca,
E tu sequer reages,
Sinto-te morta,
Seca como uma folha caída
Que o vento traz até os pés
Acorrentados,
Amarrados,
Atrofiados.
E eu, sozinha, sentada na soleira,
Espero pelo suspiro final.


BM

Sentimento Funesto

De repente sinto soprar
Em minha face
A brisa gélida da indiferença.
Meus punhos presos
Como se algemas tivessem
Detendo-me as mãos.
Impedindo qualquer gesto de defesa,
Estava à mercê de uma crueldade mordaz
Que atirava ao chão em um ímpeto atroz
Todo o meu castelo de quimeras.
A dor me varava os pulmões
Como uma viga em brasas
Que atinge a alma lentamente
Sem dó nem piedade,
E o sangue a jorrar pelas minhas costas
Retorcidas pelas dores de um parto prematuro,
Mãe de um desejo insensato,
E demasiadamente descabido.
Iludida por um amor tirano,
Uma perversa ternura que amenizava
O pavor com momentos ínfimos de calmaria.
Doce ilusão, a dor subitamente
Fazia-se voraz como uma flecha
Que ultrapassa os galhos de árvores
E estoca no dorso de um sabiá.
Ainda assim, vagava a esmo
Pelos caminhos tortuosos
Que me levariam
Quem sabe de volta à sensatez
Da qual um dia fui dona.
Abandonada,
Perdida,
Por entre os jazigos de um paraíso funesto,
Esbarrando o corpo lavado de sangue
Nos túmulos, aguçando os defuntos
Que desejavam minhas vísceras
Tal como canibais famintos
De uma morbidade assustadora.
E meu corpo já cadavérico
Padecendo por entre as lápides
Rogava num suspiro único:
Volte para mim
E devolva-me a vida roubada.

BM

Sina

Padeço
Neste recanto sublime.
Quarto, onde despejo todas
As amarguras que me são pungentes.
Do amor,
Ciência tenho,
De que não sou merecedora.
Apenas a dor que este rosto
Ingrato
Sorrindo-me na fotografia
Tem a oferecer.
Os passos, já confusos,
Não guiam mais o corpo
À serenidade.
Foi-me, pelos dedos escorrida
Toda a vida declamada
Pelo meu fiel rapsodo...
Que trazia aos montes,
Em seus braços
A poética perfeita de meus versos.
E eu, não os recitava,
Apenas os compunha,
E logo, tão logo, os abandonava,
Quando a dor afastava-se pendularmente,
A poesia era a morte de minhas lágrimas.
E o meu corpo,
Ah, vilmente desejado,
Nasceu para ser exposto
Em uma vitrine,
A fim do apreço, da beleza jovial,
Que meus traços possuem,
Ou, para ser deitado, e devorado,
Por uma fera no cio,
Que ao final do dia,
Chama-me de cria.
Não é mérito meu
O que narram os românticos,
Talvez, sina minha seja,
A moléstia de tuas vidas.


BM

Bandido Banido


A vida fervilha-me o sangue,
Até que as borbulhas jorrem em minha face
Todo o desespero contido
Nesta alma que por ti
Começara a viver.
Sem medos, sem receios,
Sem clamar aos santos
Um pedido de afago
Atirei-me naqueles braços ternos,
Ouvi aquele som brando
Tal qual os pássaros em uma manhã ensolarada
A afagar-me os malogros
De uma vida denegrida
Em vis tentativas de ser feliz.
Mas a busca cessou bruscamente
Sem que eu esperasse,
Estava na esquina
Olhando a vida ao som funesto
De uma sinfonia
Que me embalava os dias
E me acalentava nas noites frias – minha fiel escudeira!
Abandonei-a, dando espaço à calmaria de teus olhos,
À ternura de tuas promessas tão vorazes.
Fui feliz no momento em que senti
Teus lábios quentes tocarem a minha testa,
Em um ato singelo de afeto
Que oprimia a avidez de tocar-me a pele.
Nosso encontro, nossos afagos,
Juras tão secretas.
Libertina, fui até o fim, em
Desejos carnais, vontade de respirar o ar que era teu.
Mas o suspiro derradeiro chegou à véspera,
Na véspera de um sorriso,
Antecedendo os olhos que iriam brilhar,
As mãos que se entrelaçariam,
Corpos se fundiriam.
Tão infantil, tão prematuro,
E já precocemente assassinado
Foi o meu sentimento bandido.
E a busca agora é pelas lágrimas que perdi
No caminho que me levou à tua vida.
Perdi os farrapos dos meus sonhos
Que hoje se fazem desnudos.
E agora nua, sigo meu trajeto incerto,
Vivo os meus dias intermináveis
E rogo pela morte do tempo
Que não cumpre a tua parte.
Ainda espero pela absolvição
De um crime que não cometi.
Que pecado! Este riacho que
Transborda nos olhos do esquecimento.
Ah sentimento indesejado,
Bandido,
Banido,
Criatura que me sugou o sangue,
E a última gota na taça,
Beberemos juntas!

BM


A tua procura

Estas lágrimas que escorrem
Feito uma correnteza íngreme
Em minha face,
Embaçando as lentes arranhadas de meus óculos
São como ácido que corrói
Lentamente as maças do rosto,
Hoje, já envelhecido.
As horas velozmente
Extirpam-me de nossa vida.
E a busca segue incansável
Por um pouco de calma.
Desassossegada, eu cambaleio trôpega
Todos os cômodos desta casa,
Os pés marcados pelo pó,
Que os cupins deixavam nos móveis,
Há tempos não espanados.
Nossa casa,
E, no entanto, não acho
Sequer as suas vestimentas,
Aquelas, que dei a ti,
No ato mais solene de nossa saudade,
Saldei-te,
Pus-te no altar, tal como uma santa,
Venerei por séculos atitudes tão simplórias.
Corro ao toucador
E caço desatinada as peças,
Não acho aquilo que nas manhãs de sol
Escovava as tuas madeixas tão negras.
Vejo, estagnada diante de mim,
A velhice no espelho.
Grito em meu silêncio soturno,
E acabrunhada,
Em um canto qualquer da sala de visitas,
Falo, quase roufenhando,
Procuro....
Cadê tu?
Que nunca esteve aqui.

BM