29 outubro, 2009




... meu câncer ...

Foi se perdendo, assim...
Sem que percebêssemos,
Toda uma vida.
No início uma tosse de refriados
Mesquinhos, que sequer podiam
Ser dizerem gripes...
Algumas cólicas, tão discretas
Como meu choro de filha
Abandonada, largada, deixada à porta
D’uma igreja em dia de chuva
Ainda no berço, vítima de mosquitos,
Pela tua ausência o véu não me cobre mais...
Estou nua...
Foi te levando, como o vento vespertino
Cuja folha seca arrasta, lentamente...
Alguns fios de cabelos que quedavam
De teu couro e ficavam nas fronhas
Onde hoje repouso minha mente
Tão insípida...
Tu foste saindo tão devagar,
A moléstia tomando posse
De cada célula sem pedir permissão,
Os adenocarcinomas roubaram-te os órgãos,
Um por um... de mancinho ... sem alarde
Barulho ou confusão...
Quando formaram a tropa da mais
Perfeita elite... arrancando teu peso,
Fazendo-a caber tão bem em meus braços
Rasgados...
O sangue, que como chafariz, era expurgado
De tua boca, misturava-se ao meu, já coagulado de
Cortes sem curativos.
Ao final, não entendi o enredo do drama,
Antes de as cortinas se unirem,
Arrancara-me aos solavancos dos braços teus... gélidos.

BM.

O baú carmim

Acordo,
Tenho cheiro de tacabo
álcool e o corpo nu,
Da nudez mais vergonhosa
Que já senti.
Para quê roupas – convenções.
Ao pior já fui exposta.
O conteúdo daquele baú vermelho
Dilacera cada artéria minha...
As cartas, assaltadas por vozes
Gestos, por d-encanto adquiriram (os) sentidos,
Tateiam das minhas unhas dos pés, há muito não
Manicuradas, até as pontas duplas de meus cabelos.
Têm a fragrância dos mais variados olores franceses,
Ainda que dotem de vinte anos quase, possuem a junventude,
O brilho, a vida que me foram roubadaos.
Meu copo de uísque está transbordando – com leite,
Obrigada garçom.
O que vos tens a ver com o fato de eu ter esse hábito?
Ponho o que eu quiser em meus copos.
Sim, sei que vais perguntar à insana: “já tomaste teus remédios?”
Já o fiz, e em dose suicida.
Não há remédio para o que de mim é ancestral.
Nem no tempo, que a tantas mazelas ameniza, creio eu mais.
Elas me aterrorizam, espiam pelo buraco da urna envelhecida
Minha dor... não carece que as queime agora, o que te livres de alguma
Forma,
Já estou infectada – só espero pelo dia final.

BM



Carta d’uma in-confidente.

Mais uma vez estou enganada,
Idiota, pensei que fosse pioneira
Nas coisas mais íntimas de teu ser...
Porém só o fiz porque me foste
Assaz convincente com tuas palavras
Bem ditas, teu discurso romântico,
Teu lacre falso!
Uma fúria inoportuna toma conta
De meus dedos, minhas garras carmim
Não conseguem largar as penas dos
Gansos que consegui esganar hoje à tarde
No Campo de São Bento, e antes que alguém
De ordem viesse me punir,
Fugi, corri, louca exasperada ensangüentada,
Com aquelas partes de vida na mão...
Seria louca?
Não, apenas tola!
Li teus secretos testamentos,
E o de mais agravante, a recíproca belíssima
Em cartas tão bem escritas, verdadeiras prosas-poéticas...
Tenho nas mãos o Diário de uma vida sentimental,
O que de mais ordinário, a vida pregressa do meu amor.
E descubro o que sou ou não sou.
Naquele tempo, quando meu eu-lírico
Sifilítico augustiano, dotava apenas quatro anos
De idade, tão inocente a autora, e tão amargurada a
Recém verve poética.
Basta, cale a boca, nada do que aludires agora
Vai fazer sentido, só depor contra ti.
Cale, eu imploro, o que tu me dizes hoje, o vento pode levar,
Mas o mesmo ele não fará com o que está marcada em papiros.

BM.

Hoje eu vou ao mercado sozinha
Perco-me entre os tantos corredores...
Espero na fila, efetuo o pagamento
E deixo que os entregadores me
Tragam o sustento...
Não carrego mais as sacolas
Com os nossos víveres, dividindo-as
Contigo, pesando as sacolas, brigando,
Trapaceando para carregar as mais leves...
Pilhéria... todas acabavam para que
Eu arrumasse mesmo, enquanto tu
Acalmavas tua prole, que sedenta,
Aguardava que tu chegasses...
Hoje eu ando pelas ruas desprezada
Nem os bêbados do bar da esquina
Olham minha beleza inexistente...
Não recebo mais lírios, nem tampouco
Presenteio orquídeas... só as olho na redoma,
Na mesma em que pus nosso amor maldito.
Atravesso a rua, volto de minha vida pacata,
Olho com asco aquela mulher do outro lado
Da rua, as suas vestimentas imundas,
Seus pés com sandálias prestes a arrebentar,
Os trapos surrados que cobriam tão magro corpo...
Ela usava máscara, acometida por alguma doença
Contagiosa...
Quisera eu, só usei máscaras em bailes à fantasia...
Pudera eu me vingar de mim com a moléstia
Daquela mulher...
Apenas uma passante hoje... amanhã
Já um cadáver conformado...
E a mim, restará apenas ler no noticiário mais
Uma morte que não é a minha.

BM.



Madame amante

Por tantas vezes quis
Matar a ti, até o cometi
Em poesias...
Se não me falha a memória a
Assassinei três vezes...
Por que o três nos persegue até hoje?
Nunca conseguimos ser duas!
Tu me colocaste doente.
Aquele travesseiro era dele
Onde eu punha minha cabeça
Todas as noites e me abria aos
Pesadelos...
Ostensiva a tua aliança, sempre
A brilhar...
E a que eu lhe dei trazia as marcas
Da clandestinidade, de um amor sofrido...
Era fosca de propósito... ainda me falaste isso no leito dum hospital.
Não revelarei a ti que o teu cheiro
Intromete-se em minhas narinas.
Que o som de tua voz ainda me canta berceuse.
O gosto de teus beijos ainda mora em mim.
Farei um ensaio...
Um dia me disseste – “preciso ficar só, me deixe”
Noutro falaste: “vem, preciso de colo”...
Saia daqui, não me procures mais,
Proíbo-te de saber notícias minhas...
Sejas feliz ao lado de teu Senhor...
Esqueças meu rosto de pavor
Vá embora... me deixes quieta...
Quero percorrer minha casa,
Descabelando-me, arranhar as paredes
Até consumir o carmim de minhas unhas – misturando-se ao sangue.
Acabar com o uísque e os psicotrópicos...
Rasgar o vestido mais lindo que me deste,
E sair à rua uma Madame que foi
Tão simplesmente a OUTRA.

BM




Acho que eu estava morta, e, foi uma pena que os médicos, por demais competentes, tenham-me acordado daquilo que posso dizer ter sido a fase mais feliz de minha vida medíocre.
Por que a ressurreição se não sou Jesus Cristo para tal ato tão nobre, se não vou estar sentada à direita do pai, nem tampouco da mãe? Se de mim tudo fora roubado, deixaram-me a carcaça de moribunda na esquina da Santa Clara.
E este acidente com a explosão, houve um morto, fiquei sabendo por bocas, não assisto a tele-jornais – tenho horror de televisões, não ouço rádio – o barulho me incomoda, não leio jornais – já não entendo um parágrafo inteiro, de deteriorado, meu intelecto tem dificuldades de compreender as histórias em quadrinhos da Turma da Mônica. Aquele morto deveria ser eu, a vez era minha, por que outro foi em meu lugar? Eu exijo meu direito de morrer!
Não tenho mais nada para saldar com a vida, nem ela comigo, estamos acertadas.
Não perguntarei aos queridos se sentirão saudades, a dor é imensurável, mal consigo mover uma lembrança, estou encolhida na cama, ardendo de pânico, de pavor, olho a porta do guarda-roupas e tenho medo de abri-la, acho que meus pesadelos cairão todos em minha cabeça, tão como espectros arrastar-me-ão para o fundo do armário, onde estarei para sempre com o bicho-papão.
Ele dorme, possivelmente sonha aqueles tais sonhos que não “devemos confessar de modo algum”, ou simplesmente, vencido pelo cansaço, capotou mais uma noite, minha insônia tem inveja de vê-lo dormir.
Hoje eu jantei sozinha, está certo de que não que era nenhuma data especial – existem datas especiais? Que vá para o inferno o Bom Velhinho! Mas lembro de que ontem também fiz minha última refeição sozinha, e no dia anterior a mesma coisa. Não manda o tradicionalismo que as esposas esperem por seus pares para o jantar? Porém, quando ele retorna, meu inconsciente não está mais acordado, embora minhas pálpebras não fechem, olho tudo ao meu redor, escuto as vozes, falo, choro, me desespero, anuncio que fiquei louca e preciso estar só, aviso que uma fúria repentina tomou conta do meu ser, peço para que mantenham distância, fiquei agressiva demais, ao invés de “me morrer” sou capaz de matar.
Nada mais acalma essa dor atroz, antes eu me sedava e ao acordar, ainda que com sentimento de frustração, dizendo – droga, ainda estou viva. Eu tinha alguns instantes pacíficos, hoje nenhum, tudo machuca, sinto- molestada pelos dias que me obrigo a viver.
Será por isso que sou apaixonada por avatares, por viver o virtual, uma vida na qual eu posso ser e fazer o que desejo, ainda desejo?
Preciso ir ver meu pai, a voz de homem acabado dele acaba com meus restos mortais. Tudo foi de uma injustiça tamanha, vê-la definhando até o último dia quando encenei O beijo no asfalto, beijando a morte para saber o que tinha de mistério, para ter na boca, sempre, a morbidez do amargo existencial.
São quatro horas da manhã, leitor, só uma pessoa fora de seu juízo perfeito fica escrevendo asneiras a essa hora, sem coerência nem coesão.
Vou-me, preciso vestir meu luto, daqui a pouco é chegada a hora da metadona, acho que vou apagar um pouco.


BM.